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Foto do escritorLuís Felipe Guimarães

Reportagem: A vida sem o grave, médio e agudo

Atualizado: 15 de jun. de 2022



A vida sem o grave, médio e agudo


Surdos e intérprete em lições bíblicas. Foto: Luís Felipe Guimarães

Como são alguns pilares rotineiros da vida para os surdos



Por: Luís Felipe Guimarães


É comum pessoas conversarem sobre sua escola, falando sobre o que aprenderam e conversar sobre assuntos diversos com seus amigos e familiares. Sobre sua vida social, indo em shows, barzinhos e se relacionando com pessoas. Sobre seu trabalho, falando com os colegas sobre sua vida e tendo reuniões em grupo.


Todas essas atividades são comuns para a maioria dos cidadãos brasileiros. Esses três pilares: educação, sociedade e trabalho, são vividos e conhecidos por boa parte das pessoas. Porém, para aproximadamente 5% da população brasileira, esses pilares não são muito discutidos.


Esses 5%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, corresponde ao número de pessoas surdas no Brasil.


Devido a barreiras linguísticas, que muitas vezes são transformadas em barreiras sociais, e a preconceitos presentes em nossos cotidianos, a comunidade Surda segue como uma parcela invisibilizada na sociedade brasileira. Questões como sua educação, vida social e sua participação no mercado de trabalho merecem ser mais discutidas no Brasil.


A inserção do surdo na sociedade, desde sua educação primária, que é a base da formação de uma pessoa. Também pela vertente do surdo como sujeito social, que trata de sua integração nos meios sociais, tanto escolar quanto na família e ambientes externos. Chegando então, até o momento de entrar no mercado de trabalho, são assuntos que tem que ser mais reconhecidos, visando a inclusão do surdo na sociedade.



Surdos na Educação



O início da vida escolar de uma pessoa é muito importante. Nesse começo serão feitos os primeiros passos da criança no processo educativo, mas também na questão social, já que enquanto na escola ou creche, a criança vai ter os primeiros contatos com outras crianças.

A falta de materiais e conteúdos ministrados em LIBRAS dentro do cenário educativo, dificulta a inserção dos surdos em escolas, cursos e universidades. Mesmo que no Artigo IV do Estatuto da Pessoa com Deficiência garanta a oferta de educação bilíngue, em LIBRAS, e o uso de tecnologia assistiva, em escolas do poder público, muitas instituições não possuem esses recursos, ou seus profissionais não tem a formação adequada.

O professor de Libras, João Bispo, afirma que esse despreparo educacional pode gerar consequências substanciais para a pessoa surda. “Essa falta de estrutura educacional, faz com que o surdo ao findar seu processo educativo de formação, não consiga outros espaços na sociedade, no mercado de trabalho”, conta o professor.

João Bispo, professor e intérprete de Libras. Foto: Arquivo pessoal

Bispo diz que a forma que a educação se

porta hoje para o surdo, faz com que alguns

deles tenham um pequeno atraso cognitivo.

Entretanto, ele chama também a atenção de

que esse atraso não tem nenhuma ligação

com a surdez. “A surdez não ocasiona

nenhuma deficiência intelectual no surdo.

Mas a falta de aquisição linguística sim,

justamente pelas as escolas não promoverem

a língua de sinais”, reitera Bispo.


Outra consequência desse descaso

educacional, apontado pelo professor, é

algumas dificuldades na interação social,

devido à falta de conhecimento da língua de

sinais pela sociedade. “O surdo quando volta

pra casa não tem contato e não consegue

conversar com seus pais e familiares, por os

pais não saberem falar Libras, e as vezes nem os próprios surdos”, relata Bispo



Início da Educação


Em conversa com Tiara Reis, surda formada em design de moda, ela conta que passou por diversas escolas, mas todas eram para estudantes ouvintes, sem nenhum recurso de

Foto: AESOS/ Divulgação

acessibilidade para alunos surdos. Reis afirma

que só conseguiu concluir o ensino médio

quando estudou numa escola para surdos, a

AESOS (Associação Educacional Sons no

Silêncio).

“Só consegui entender as matérias, quando

estudei na AESOS, nas escolas anteriores, eu

não conseguia avançar as séries porque

nenhum professor conseguia se comunicar

comigo”, relata Reis.



Durante a faculdade, a designer de moda de 38 anos, diz que ficou um mês sem aula devido a seu intérprete de Libras ter abandonado a função e que teve que insistir com a faculdade pra ter outro intérprete. “Só consegui outro intérprete porque minha irmã, depois de insistir para que a faculdade providenciasse com urgência um novo intérprete, teve que ameaçar denunciar a situação ao MEC, pois a coordenação do curso estava tratando a situação com descaso”, conta Reis.

Reis relata seu primeiro contato com colegas de turma na escola. Sua primeira escola não era para surdos, então ela conta que nem todos conseguiam conversar com ela. “Nós brincávamos muito, mas não conversávamos porque eu não entendia eles e eles não me entendiam”, expõe a designer de moda.

Foto: AESOS/ Divulgação

Já Thiago Martins, brasileiro surdo, diz que estudou em uma escola que tinha um professor que dava aulas em Libras, o que facilitou sua educação. Porém, ele relata que quando mudou de escola apresentou dificuldades em aprender porque não havia nenhum professor que ensinasse em Libras, só conseguindo terminar o 2º grau quando estudou na AESOS, escola para surdos.


O baiano de 38 anos, conta que seu primeiro contato com os seus colegas de classe foi bem natural. “Minha primeira escola era para surdos, para mim foi fácil ter amigos pois éramos iguais e aprendemos juntos a LIBRAS”, diz Martins. Entretanto ele comenta que quando foi para sua segunda escola, já foi mais complicado ter amigos, pois como eram ouvintes, ele não os entendia, nem eles o entendiam. “Na AESOS, eu fiz amizades novas e reencontrei velhos amigos, foi muito bom ter estudado lá porque eu consegui aprender e socializar”, completa Martins.



Primeiros passos para a inclusão escolar


Para o professor e intérprete de Libras, João Bispo, a acessibilidade para estudantes surdos não seria feita de maneira ideal somente por uma adaptação de conteúdo. Além disso, deve haver uma política linguística dentro da instituição. “Inicialmente pra algumas escolas com a presença do intérprete de língua de sinais, a acessibilidade acontecendo a partir dessa competência tradutória do profissional”, diz Bispo.

“Tem que ser uma política que promova o ensino e a aprendizagem da língua de sinais por outros atores dentro dessa cena educativa. “A gestão, direção e funcionários tem que estar envolvidos nessa política”, opina Bispo, “É importante que os outros alunos, mesmo ouvintes, aprendam a língua de sinais”, completa.

Foto: Símbolo Surdo Internacional

O professor afirma que a língua de sinais deve estar presente no projeto político pedagógico da escola e no regimento das faculdades, as instituições tem que assumir esse compromisso, para que as áreas tenham a presença da língua de sinais e promovam a entrada de alunos surdos dentro desses espaços.

Tiara Reis acredita que professores ouvintes que não dominam a língua de sinais não são ideais para pessoas surdas. As escolas e faculdades deveriam ter professores que saibam Libras para que os surdos possam estudar e entender tudo que é ensinado,

assim como um ouvinte entende.


“Os assuntos e temas precisam ser explicados em Libras, não adianta gesticular ou escrever, a nossa língua é Libras”, alega Reis.



Surdos na Sociedade


A barreira linguística presente entre os surdos e ouvintes, muitas vezes acaba gerando uma barreira social, que juntamente com o preconceito, dificultam a inserção dos surdos em sociedade. Com isso, uma parcela que já é pequena no Brasil, com 10 milhões dos brasileiros sendo surdos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, fica ainda mais invisibilizada. Mesmo que a comunidade Surda venha conquistando seu espaço na sociedade, ainda ficam evidentes alguns limites. Regado pelo preconceito, muitos ainda acham que a pessoa surda é limitada, incapaz e dependente. Thiago Martins conta que já presenciou pessoas fazendo piada e desrespeitando sua deficiência. “Eu ignorei, só que sei que isso pode machucar outros surdos, não acho certo”, afirma Martins.


Henrique Gomes, deficiente auditivo. Foto: Arquivo pessoal

No caso de Henrique Gomes, ele afirma que já sofreu ataques mais extremos por ser deficiente auditivo. O jovem de 21 anos conta que já foi agredido várias vezes quando era mais novo, além de ser alvo de piadas.

“Quando eu estava na escola no 5º ano, uma menina me chamou de insuportável só por eu ser surdo”, relata Gomes.







Já Tiara Reis diz que as pessoas tem certa curiosidade de ter uma conversa com uma pessoa surda, mas evitam fazer isso pelo fato de ter que saber Libras. A designer de moda relata que percebe que algumas pessoas ficam observando ela e sua família ou amigos quando estão conversando na rua, mas poucas possuem a “coragem” para interagir com surdos. Essa falta de “coragem” faz com que atividades simples do nosso cotidiano se torne algo desconfortável para a pessoa surda, muitas vezes contribuindo para essa manutenção dessa equivocada imagem de dependente. “Várias vezes fui em lojas solicitar um item e o vendedor trouxe um item errado ou disse que não tinha só para não me atender. Quando vamos com um ouvinte, sempre conseguimos comprar tudo que queremos”, conta Reis.



Acessibilidade já!


Outra forma de uma pessoa se sentir pertencente a uma sociedade é através de atividades culturais, como ir ao museu, teatros, shows, eventos e restaurantes. Nessas situações, a pessoa está em contato com outros indivíduos e com a cultura que abraça uma sociedade. Porém, precisa ter uma maior acessibilidade para que os surdos sejam inseridos nessas práticas sem serem prejudicados. Alguns lugares, como museus, já possuem certos recursos. É comum ver em alguns museus o uso de vídeos com intérpretes de Libras traduzindo alguns conteúdos sonoros para os surdos. Porém é preciso investir mais nesses recursos.


Tiara Reis, Designer de Moda. Foto: Arquivo pessoal

Reis ressalta essa necessidade de ter uma acessibilidade adequada para as pessoas surdas dentro do aspecto cultural. “Nós surdos queremos saber o que as músicas dizem, queremos ir aos museus, aos teatros, queremos ir aos restaurantes sem precisar apontar para o cardápio e sem precisar escrever se o pagamento será crédito ou débito”, conta Reis. “queremos assistir palestras, queremos ter acesso à cultura”, completa.





A representatividade é um fator muito importante para a inserção de um grupo na sociedade. Com isso, trazendo consigo a visibilidade. Trazendo alguém que vai refletir para os demais integrantes da sociedade as dificuldades que a comunidade Surda passa, suas necessidades.


Jaime, integrante do MAS. Foto: Arquivo pessoal

Jaime, surdo baiano integrante do MAS (Ministério Adventista com Surdos), conta que sente a necessidade de mais comunidades Surdas em Salvador. Ele alega que a cidade e o estado têm muitas pessoas surdas, mas que elas precisam se reunir mais em comunidades, e que as que já existem, precisam de mais divulgação e visibilidade.





“Seria muito importante para nós surdos termos alguém que nos represente, alguém que também seja surdo pois, somente assim teremos respeito na sociedade”, alega Martins. “Somente um surdo na política ou pelo menos alguém que realmente conviva com uma pessoa surda, para entender a nossa dificuldade em ser inserido na sociedade”, complementa.



Surdos no Mercado de Trabalho


As barreiras linguísticas e os preconceitos que a pessoa surda se depara no dia a dia, ficam ainda mais visíveis quando se trata do mercado de trabalho. A discriminação baseada na ideia de que os portadores dessa deficiência não são capazes de realizar certas ações e que são dependentes de outros, dificulta ainda mais o acesso em empregos. Além disso, muitas empresas não possuem intérpretes para auxiliarem os trabalhadores surdos em algumas situações, ou explicarem qual será sua função dentro daquele trabalho. Isso leva a permanência do surdo no emprego não ser tão longa, levando os integrantes da minoria ao desemprego ou a ocupações informais. No Brasil, somente 37% dos brasileiros com deficiência auditiva, contra os 58% dos demais brasileiros ouvintes, estão empregados, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva.


Thiago Martins, ex-funcionário de empresa de manutenção. Foto: Arquivo pessoal

Thiago Martins, conta que é difícil para eles, surdos, ingressarem no mercado de trabalho, principalmente em uma profissão de acordo com as qualificações que possuem. O surdo de 38 anos ainda fala que mesmo tendo feito cursos de aptidão em algumas áreas, ainda é desvalorizado no âmbito profissional.

“Minha esposa possui curso superior e eu possuo diversos cursos na área de tecnologia, mas em Salvador, querem nos empregar como empacotadores de supermercado, um cargo que não exige muita qualificação”, relata Martins.










Uma empresa com acessibilidade


Cristiane Cruz, intérprete de Libras que atua dentro de empresas, afirma que é importante uma instituição ter recursos de acessibilidade para os colaboradores surdos justamente para eles conseguirem ser inseridos no meio onde atuam, entender o fluxo de trabalho e aprender com a mesma precisão que os ouvintes. A intérprete de 37 anos diz que dentro de um ambiente de trabalho onde tem essa inserção do trabalhador surdo, os ouvintes apresentam interesse em conhecer mais sobre essas pessoas. “A empresa faz com que outras pessoas tenham a noção de como funciona a língua de sinal e conhecer mais os surdos”, relata Cruz.


Cristiane Cruz, intérprete de Libras. Foto: Arquivo pessoal

Cruz também comenta sobre essa questão

da valorização do trabalho do surdo. Ela fala

que o rendimento de um trabalhador não-

ouvinte é igual ao rendimento de um

trabalhador ouvinte. “Na empresa a gente

teve um vídeo, mostrando como é o

trabalho de um surdo e de um ouvinte,

quando estão lado a lado. Nesse vídeo a

gente comprova que o rendimento é o

mesmo, mostrando que eles são capazes

de exercerem funções tão bem quanto uma

pessoa ouvinte”, conta Cruz.

Durante a conversa, a intérprete de Libras

conta que a comunidade Surda tem vencido

algum desses obstáculos e conquistado

novas áreas para trabalhar. Ela ainda

ressalta a importância da inserção da língua

de sinais dentro do ecossistema das

empresas para a inclusão do surdo no

ambiente de trabalho. Assim como o ouvinte precisa de um treinamento pra exercer sua função, o não-ouvinte também precisa, a única diferença é que vai ser em Libras.


“Quando há a possibilidade de trabalhar na área, o interprete detalha e explica como funciona a área, a função, o fluxo, e eles exercem a função normalmente.”, conta Cruz. “Essa explicação deixa eles mais soltos, pois já foi tudo explicado, e trabalham como qualquer pessoa, não tendo dependência nenhuma”, completa.

Cruz comenta sobre o feedback que a empresa recebe por ter um intérprete de Libras para fazer toda a interface entre ouvintes e não-ouvintes. “A resposta deles tem sido muito positiva, porque eles estão recebendo o mesmo conteúdo e aprendizado, no mesmo nível e tempo dos ouvintes”, diz Cruz.

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